Filósofo discute o interesse coletivo pela história do garoto apontado como autor da morte dos pais, da avó, da tia-avó em São Paulo.
A conclusão da polícia é de que o garoto de treze matou a família, foi à escola e, voltando para casa, se matou. Dito assim parece uma bobagem sem tamanho. Soa ainda mais tolo quando se nota que o menino não era violento na escola e que os vizinhos o qualificaram como incapaz de fazer o que se diz que fez, ou seja, atirar em alguém.
Todavia, vamos supor que a polícia tenha acertado. Tomemos também a
hipótese de que acreditamos que a polícia tenha acertado. O que nos faz
ficar perturbados? O que faz com que passemos a ler a notícia em vários
lugares, procurando mais elementos?
Boa parte de nós lê sobre o assunto vorazmente menos para
saber do garoto e do crime, ainda que gostemos de novela policial, e
mais porque queremos saber sobre nós mesmos. Queremos saber o que se
passa na cabeça de alguém no tempo que é decorrido entre matar pais e
avós, ir à escola, voltar e então e só então se matar. Nosso desejo de
saber disso vem de querermos nos conhecer.
Todos nós somos enigmas para nós mesmos. Quando nos
deparamos com casos assim, ficamos obcecados porque queremos nos
imaginar no lugar do garoto e tentar sentir o que ele sentiu nesse tempo
em que esteve na escola e voltou. Temos a impressão de que se fizermos
na imaginação o que o garoto tirou da imaginação e colocou em prática,
saberemos afinal quem somos nós ou, melhor dizendo, o que somos nós.
Entramos na pele do garoto e nos pomos a pensar: “bem, acabei de matar
pessoas – meus pais! Opa! Hora da aula, não posso faltar”. É isso? Logo
em seguida, dizemos para nós mesmos: “ah, mas se foi assim, nada podemos
aprender disso, o garoto estava maluco”. Em um terceiro momento,
reagimos de maneira diferente: “sim, ele estava maluco, mas e nós?” Não
podemos esperar grande adrenalina de um ato nosso e ao praticá-lo não
recebermos nada em troca? Cada um de nós, ao menos os mais velhos, já se
pegou em desespero por questões mínimas e já se manteve extremamente
calmo em situações que deveriam ser apavorantes e desestabilizadoras.
Bem, se é assim, então temos mesmo de entender o garoto. Matar, ir para a
escola e voltar para então se matar pode sim ocorrer conosco. Cada um
de nós sabe que, de certo modo, aos treze anos, poderíamos sim realizar
uma coisa desse tipo e continuarmos uma rotina. Aos treze anos é fácil
agir assim. Por quê?
Em nossa sociedade, treze anos é mais ou menos um período de término
de algo que começa por volta dos oito ou nove anos, que é a
pré-adolescência. Nessa época, não raro, negamos os valores e
comportamentos dos adolescentes, que para o nosso paladar são
desregrados, apaixonados, emotivamente instáveis. Estamos na beira de
agirmos como eles, e então os negamos peremptoriamente, adotando o
comportamento de nossos pais ou de qualquer outra autoridade que nos dê
uma moral rígida, uma regra acordante com a sociedade. Nada mais linha
dura em moral que um pré-adolescente. Um adolescente pode matar os pais
para experimentar a adrenalina e também para impressionar a namorada. Um
pré-adolescente mata os pais para cumprir um projeto de vida, um ideal
moral.
Matar pais e avós enquanto eles dormem é um modo de dar
um passo na direção de se fazer um cumpridor de um ideal profissional,
por exemplo, o de ser um matador. Muitos de nós testamos profissões com
os de casa: abrimos uma lojinha e nossos primeiros clientes são nossos
pais e avós. Ora, podemos abrir um escritório de serviços, um lugar onde
se contrata matadores de aluguel, e podemos escolher como clientes ou
como vítimas nossos pais. Não desejamos cumprir o serviço e, então, nos
desesperar de modo a mostrar que não cumpríamos um segundo serviço.
Cumprimos um serviço, depois, fazemos o que temos sempre feito em
seguida, que é ir à escola, e então voltamos. Só então avaliamos que
fizemos um serviço “barra pesada”.
A pergunta dos treze anos é clara: “agüentarei a adrenalina que sinto
que vai cair no meu sangue quando todos os hormônios estiverem no pico?”
Na busca dessa resposta, podemos tentar várias coisas. Uma delas pode
ser esta: “vou ver o que ocorre se eu quiser ser aquilo que quero ser,
vou ver se isso que quero ser me dará emoções que eu posso suportar,
tanto quanto imagino que não posso suportar a nova fase da minha vida,
que é a adolescência”. Uma pessoa que se observa e que possui boa
memória sabe muito bem do que estou falando, do que estou apontando.
Estou falando não dos dez anos ou dos quinze. Estou falando dos treze
anos.
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